- I -
Vim à Nicarágua ajudar a organizar um centro de imprensa com objetivos semelhantes ao international press centerde Pequim, onde trabalho atualmente. Sou do Rio de Janeiro, depois explico como fui parar na China, onde acabei casando e tendo um filho (não exatamente nessa ordem).
A Nicarágua é parecida com o Brasil, sobretudo com o nordeste. Não conheço São Luiz do Maranhão, mas dizem que parece com Manágua. Vim num vôo tranqüilo, durante o qual li alguns contos de Rubén Darío, para desenferrujar meu espanhol. No avião, havia chineses e sobretudo cubanos, em função da escala em Havana, onde fiquei na sala de trânsito do aeroporto duas horas. Resolvi, então, andar para esticar as pernas, percebendo como são distintos latino-americanos e chineses. A diferença é racial, comportamental e lingüística.
A paisagem dos trópicos, para um chinês, é outro planeta. Não venho por essas latitudes há dois anos, então a mim também chocaram os coqueiros crescidos no aeroporto de Havana, bem como o ar quente e úmido. Eram três da manhã, cruzamos a pista a pé, rumo à sala de trânsito. Deixei meu suéter no bagageiro do avião, pois já não precisaria.
De Cuba à Nicarágua, não levou muito tempo. Fui recebido ao descer a escada do avião e conduzido à sala vip pelo jornalista Jorge Aguirre, do diário Intercontinental, fomos almoçar no restaurante chinês do hotel, cuja comida aliás não tem nada a ver com a de Pequim. É na verdade cozinha chinesa para exportação, para branco comer.
Graças a deus, seja América Central, China ou África, sempre há um oásis ocidental, onde a familiaridade com o ambiente e os serviços é um refresco para o esforço de adaptação do estrangeiro. Considero ocidental o padrão nos países capitalistas desenvolvidos, o que inclui sofisticados restaurantes de comida oriental.
Durante o almoço, começamos a falar de trabalho. O centro de imprensa ficaria em casa ao lado do jornal onde Aguirre trabalhava. Eu disse que seria um centro não só para a Nicarágua, mas também os países vizinhos. Congregaria correspondentes estrangeiros, jornalistas locais, estudantes, empresários e diplomatas. Aguirre perguntou por que a Nicarágua e por que mandar alguém de Pequim. Respondi que na Nicarágua tinha havido a experiência sandinista, de cunho socialista, como em Cuba. Era um laboratório para se formar uma imprensa livre, de mercado, um instrumento necessário para a consolidação democrática. Daí a conveniência de escalar um brasileiro residente na China para iniciar essa cooperação técnica.
Falamos um pouco de mulher, obviamente. Elogiei as chinesas; ele, as brasileiras, sobretudo as cariocas. Mas acabara casando com uma nicaragüense, filha do dono do Nueva Prensa e fazendeiro com pretensões políticas. Convidou-me para uma volta de carro e disse para não me assustar com vários prédios destruídos, pois ainda havia marcas do terremoto de 1972, em que morreram 125.000 pessoas. Respondi que preferia sair no dia seguinte, por estar muito cansado. Então, marcamos encontrar às nove da manhã, no saguão do hotel.
- II -
Tinha videocassete no quarto e videoclube no hotel, daí peguei Intersection, com Richard Gere e Sharon Stone. Liguei o ar-condicionado, despi-me e, antes de deitar para assistir à fita, servi-me um uísque com gelo. Mergulhei imediatamente na estória, sobre casamento e separação, ou amor e traição. Mais um exemplo do título de Nelson Rodrigues Miami Herald e o New York Times. Em termos de pauta, o Nueva Prensa era semelhante aos outros periódicos locais; e todos evidenciavam um gosto por catástrofes, crimes e enterros, além do cotidiano da política interna e de reduzido noticiário internacional.
Resolvi tomar um drinque no bar do hotel, que estava vazio. Para minha surpresa, tinha caipirinha, que pedi. O garçom explicou que o gerente do hotel era brasileiro. Senti-me mais à vontade, com um conterrâneo em posição de mando onde eu iria morar dois meses. Sua função, como a minha, exigia familiaridade com o local e formação especializada.
Mas a causa primeira de minha estada ali não era profissional. Meu casamento, de três anos, estava em crise. Uma crise silenciosa, dentro de mim. Então Fan Yuan perguntava o que estava acontecendo, e eu dava sempre uma evasiva. Como dizer a verdade, que eu desconfiava de traição?
Meu plano era simples. Contratei um ex-policial para seguí-la e, se fosse o caso, identificar a terceira ponta do triângulo; daí eu decidiria o que fazer. Minha paranóia já atingia todos os nossos conhecidos. Não que nossa rotina sexual fosse ruim, pelo contrário. Na maioria das vezes, alcançávamos o clímax juntos, ou ela um pouco antes. A freqüência, quase diária, levava a crer num consistente desejo recíproco.
Por que, então, a suspeita? Nenhum indício incontestável ou mudança de comportamento. Após alguns fatos e constatações, minha intuição passou a sussurrar, depois gritar, que havia algo errado. Fatos do seguinte tipo: telefono onze da manhã do trabalho, Fan Yuan atende dizendo que está no banho, que liga depois; mas como, se tomamos banho duas horas antes? Nesse dia à noite, disse que estava cansada, que não queria namorar.
Outro exemplo: ela vai me visitar no trabalho e sai por volta de meio-dia, coincidentemente na mesma hora de um colega meu, que de tarde volta dizendo que nem teve tempo de almoçar, por ter fodido uma mulher. À noite, ela decidiu ler e adormeceu.
A maneira como ela olha ou fala com certos homens também é suspeita. Às vezes, quando vamos a um restaurante, ela paquera na minha frente. No balcão de uma loja, conversa animadamente com um vendedor boa pinta sobre produtos que não vai comprar e me deixa plantado esperando.
Algo sutil, não menos importante: sua submissão a meu mau humor. Fui ficando cada vez mais irritadiço de dezembro para cá, por ter sido rebaixado no press center, de primeiro a segundo assessor do chefe de relações públicas, substituído por um inglês mais jovem. Além do golpe na auto-estima, meu salário diminuiu. Foi esse cara que disse que nem comeu por ter fodido na hora do almoço. Pois Fan Yuan parecia um colchão infinito perante minhas injúrias freqüentes, como se merecesse punição (de todo modo, insuficiente).
A leitura da sonata de Kreutzer, de Tolstói, foi a gota d'água. Decidi arranjar uma viagem, para pensar no casamento e na profissão, ambos me faziam mal. Surgiu a oportunidade de vir para a Nicarágua, apresentei-me e levei. Na semana anterior a minha partida, Fan Yuan interpretou momentos de tristeza, e suas lágrimas eram (não me venham defendê-la) for no one.
- III -
Após três caipirinhas, sem comer nada, fui para o quarto zonzo e desabei na cama. Meu sono foi agitado pelo calor (nem me lembrei de ligar o ar-condicionado) e por uma série de pesadelos, em que Fan Yuan cada vez surgia abraçada a um homem diferente, dizendo 'este você não conhece, mas não é nada do que você está pensando; acredite, é amizade'. Minha angústia foi aumentando, até que no meio da noite acordei gritando.
Procurei, então, me acalmar, respirando fundo. Tinha de tirar aquilo a limpo, o quanto antes. Até Jorge Aguirre estivera naquele delírio paranóico. Peguei o telefone e pedi ligação para meu apartamento em Pequim. Fan Yuan atendeu:
'Alô, Fan?'
'Fernando? Chegou bem?'
'Já tô no hotel. E você?'
'Tudo indo; com muita saudade!'
'Calma, passa rápido. Toninho tá dormindo?'
'Tá... Tá no quarto dele.'
'O calor aqui é infernal.'
'É?'
'É... Tem alguém aí?'
'Como assim?!'
'Esquece...'
'Fernando, você sabe que não. Pára com isso! Eu tô com você porque quero. Falo tua língua em casa, contigo e com teu filho. Tá dando uma de muçulmano; acha que adianta?'
'Me desculpe.' Inútil, anti-produtivo, jogar indireta; se fosse o caso, ela passaria a tomar maiores precauções. 'É que essa distância toda me deixa louco!'
'Não é de hoje que você vem me tratando mal. Esse ciúme que eu não entendo. Mas eu tenho um limite!'
'Eu sei...' a primeira vez que Fan reagia, e parecia sinceramente magoada. Talvez fosse tudo minha imaginação; senti-me até culpado. 'Acabei descontando a tensão do trabalho em você. Daqui de longe, vejo isso com clareza. Tenho que ser mais equilibrado.'
'É bom...'
'Amanhã, começo o trabalho aqui. Os nicaragüenses me pareceram simpáticos. Isso facilita muito a vida.'
'Amanhã à tarde, vou pra casa da vovó.'
'Sua mãe vai?'
'Hoje.'
'Você não vai com ela?'
'Ela vai de trem.'
'Dá uma carona!'
'Hoje?'
'Por quê não?'
'Tô cansada!'
'De quê?'
'Fica com um bebê o dia inteiro!'
'Você não quer empregada!'
'Fernando, não é hora de discutir isso. Melhor você desligar, olha a conta.'
'É. Te ligo na semana que vem. Um beijo. Cuida do Toninho.'
'Tchau.'
Desliguei o fone pior que antes. Quando eu pensava aliviado estar livre da dúvida, ela ressurgia. Torcia para que o ex-policial concluísse o trabalho, e já não me importava se fossem boas ou más notícias, conquanto esclarecessem a situação. Essa perspectiva me acalmou um pouco e me permitiu dormir.
- IV -
No dia seguinte, Jorge Aguirre apresentou-me aos colegas de trabalho. Percebi que havia uma mulher interessante, Selena Cortez, repórter do Nueva Prensa. Percebi, também, que o centro de imprensa seria dominado por esse jornal, que era governista. Mas não me cabia dar opinião a respeito, e sim ajudar a instalar o centro e fazê-lo funcionar.
Na reunião que tivemos, propûs que o centro de imprensa fosse inaugurado com uma apresentação do ministro da cooperação externa sobre a atuação do governo nessa área, já que a Nicarágua é, depois de Israel, o país que mais recebe ajuda per capita. A sugestão foi aprovada, e o ministro seria consultado.
Daí eu disse que, marcada a data da inauguração, era correr para organizar tudo no prazo. Minha principal preocupação era saber se poderia contar com softwares adequados e pessoal capaz de manejá-los. O equipamento disponível tinha sido doado pelo governo norueguês e era de primeira, havendo inclusive o Windows 95.
Convidei Jorge Aguirre para almoçar, e ele sugeriu uma pizzaria. Para minha surpresa, perguntou se não podia levar Selena Cortez. Concordei, dizendo que seria útil esse tipo de contato com os colegas, para trocar idéias e ter um feedback interno das ações implementadas. Aguirre limitou-se a sorrir.
Durante o almoço, Selena elogiou a sugestão de inaugurar o centro com um evento sobre cooperação externa, por ser uma das principais bandeiras do governo e agradar à comunidade doadora. A seu ver, o ministro toparia e ainda daria apoio, inclusive financeiro, para sua realização. Expliquei que não seria caro, muito pelo contrário. O assunto sendo interessante e o palestrante de peso, bastava expedir convite, que as pessoas vinham ou mandavam representante.
À tarde, recebemos fax com resposta positiva do ministro e proposta de datas. Seu assessor de imprensa, Ruy Montealegre, telefonou-me em seguida, para confirmar o recebimento do fax e pedir maiores informações sobre o international press center de Manágua. Disse que conhecia bem o de Buenos Aires, por ter vivido naquela cidade durante todo o período sandinista, na condição de exilado político e correspondente do El País. Prometi enviar algo por escrito ainda naquele dia. Dediquei o resto do horário de expediente a esse documento, com a colaboração voluntária de Selena, que deu boas idéias para o projeto de conferência com o ministro acima.
A happy hour passei sozinho no bar do hotel, tomando uísque. Um pianista que tocava bossa nova viu que gostei e resolveu cantar as melodias. Eu estava morto de cansaço, mas satisfeito com o dia de trabalho. Nesse momento, a solidão era um prazer, como se tivesse sido liberado de grossas correntes. Sentia o refluxo da mente alquebrada, o repouso proporcionado pela visão devaneando sem ponto fixo, pela música e pela bebida.
Uma garçonete aproximou-se e indagou meu nome. Disse então que me chamavam ao telefone. De início, não reconheci a voz, mas pelo assunto vi que falava o ex-policial. Até o momento, não tinha descoberto nada, mas continuaria seguindo e investigando. Agradeci a chamada e instruí que me ligasse só se houvesse novidades.
Subi para o quarto e pedi dois sanduíches. Vi no vídeo Hope and Glory, e a irmã do protagonista era muito gostosa. Após me masturbar, adormeci. Fui despertado pelo telefone no meio da noite. Ao ouvir o ex-policial, gelei. Pedi para esperar na linha um instante e fui até o banheiro. Acendi a luz e encarei-me no espelho. É agora, pensei, a hora da verdade. Respirei fundo dez vezes, depois passei água no rosto calmamente. Fui até o frigobar e pûs meio copo de vodka, para beber num gole, se fosse preciso.
A notícia veio como uma bala: ela tinha outro. Eu quis saber detalhes. Um vizinho da avó; encontravam-se nos fins de semana quando eu ficava em Moscou trabalhando. O ex-policial a tinha visto entrar na casa do outro havia mais ou menos uma hora. Daí perguntou se eu queria alguma providência. Providência? Pensei. Mas logo entendi o que ele queria dizer. Pedi que esperasse um momento e virei o copo de vodka.
O fogo da bebida atiçou minha imaginação, que pintou Fan Yuan com outro sem cara, só movimento. Sendo fodida em todas as posições, totalmente dominada pelo prazer. Pude ouvir, então, seus gemidos de gozo. Pois se arrependeria desse ato animalesco. Quis esfaqueá-la nua, encará-la com a faca enterrada no peito. Tive uma ereção, ao imaginar a cena.
Peguei o fone e disse que fosse em frente. Só me ligasse para dar o resultado. Uma vez em Pequim, eu o procuraria para o pagamento. Ao desligar, pensei se não teria remorsos, como o protagonista de crime e castigo. Talvez fosse melhor confirmar, para depois agir. Ligaria para aquele ex-policial e pediria para tirar fotos, o que seria um atenuante perante a justiça, se fosse o caso. Além disso, eu não tinha certeza sobre o que fazer: talvez separasse e voltasse para o brasil; ou, sem provas, continuasse casado.
Desesperei-me, ao constatar que tinha esquecido o número do telefone do ex-policial em Pequim, dentro de um livro em meu apartamento. Liguei para lá, atendeu a secretária eletrônica. Não havia telefone na casa da avó, para que eu alertasse Fan Yuan. Afinal, ela conhecia toda a vizinhança, pois lá ia desde criança. Era provavelmente um amigo de infância, visto que Fan Yuan não teria um amante onde todos sabiam que era casada e onde seus pais viviam a maior parte do ano. Disso, eu sei que ela não seria capaz. Aliás, toda a minha paranóia desaparecera de súbito, como o despertar de um sonho.
Virei outro copo de vodka. Se Fan Yuan me completava, e de fato era assim, por que inculcar? Eu fora vítima de minha imaginação, de mim mesmo. Pressenti então, pairando monstruosa sobre o quarto, a sombra do meu ciúme; que me fez abominável, em breve assassino. Daí chorei, chorei até adormecer.
- V -
Acordei com o despertador. Tomei uma ducha fria, o que me deu disposição física e clareza mental. Lembrei da noite anterior, como de um pesadelo. Um ex-policial não agiria precipitadamente, de improviso, o que daria tempo de eu pegar um avião para Pequim. Do hotel mesmo, reservei lugar em vôo no dia seguinte, às trezes horas. Tudo estava resolvido e tinha sido necessário, pois desanuviara minha paranóia e restaurara meu equilíbrio psicológico.
No press center, disse a Jorge Aguirre que, por motivo de doença de minha mulher, teria que passar uma semana na china, para arranjar médico, hospital, babá para Toninho, etc. Aguirre perguntou se eu não queria voltar de vez e indicar substituto. Respondi que não era preciso, por ser apenas uma crise de apendicite.
Pela manhã, trabalhei no projeto de concepção geral do centro de imprensa. Selena ajudou-me bastante, com idéias, sugestões e críticas. Seu estilo suave e claro de opinar conquistou minha cabeça e meu coração. Quando fomos almoçar, no Pizza Italia, o ciúme que até a noite anterior me tomara parecia, agora, distante no tempo. Eu já não era adolescente, para enganar a mim mesmo e não perceber que estava interessado em outra mulher. Essa volubilidade assustou-me um pouco, por ser demasiadamente humana. Percebi que quem tivesse consciência das próprias fraquezas dificilmente se decepcionaria com os outros e não raro se surpreenderia positivamente.
Depois do almoço, demos uma volta de carro. Selena mostrou-me a cidade, que era muito espalhada, praticamente só casas e prédios de dois andares, e amplos espaços vazios, tudo isso devido ao terremoto de 1972 e à possibilidade de outro. O imponente intercontinental tinha sido uma das únicas construções de porte que sobreviveram àquela catástrofe. No teatro Rubén Darío, outro remanescente, vimos uma exposição fotográfica sobre o terremoto, com cenas que me recordaram a bomba de Hiroshima.
Então, voltamos ao press center. Em meu telefone, a luz da secretária-eletrônica piscando. Já não me deixavam em paz nem na hora do almoço, pensei. Servi-me de café na cozinha e fui tomar na sala de Jorge Aguirre. Conversamos um pouco sobre a política local e sobre os possíveis sucessores de Violeta Chamorro. Daí entrou sua secretária e disse que meu vôo estava marcado para o dia seguinte, às 12:45. Agradeci e fui para minha sala. Sentei e automaticamente pressionei o botão da secretária-eletrônica para escutar os recados.
Logo em primeiro, mensagem de Fan Yuan dizendo que estava bem, que precisava falar comigo, que eu lhe ligasse na segunda quando ela voltaria, com a mãe e Toninho, da casa da avó. Confortou-me ouvir sua voz e prever sua surpresa ao me ver entrando em casa. Eu diria que viera para consultas técnicas e que retornaria em uma semana.
A segunda mensagem era de Ruy Montealegre, pedindo que lhe ligasse com urgência. A terceira, o canalha do ex-policial, dizendo que... Desliguei na hora. Meu deus, deveria ouvir? Óbvio. Liguei de novo, e ele disse que o serviço estava feito e quanto ao pagamento ligaria após quatro meses. Lembrei de Manuel Bandeira, pois só me restava 'dançar um tango argentino'.
Eu devia continuar trabalhando, vivendo como se nada tivesse acontecido. Chamei Selena a minha sala. Ela tinha alguma coisa para fazer à noite? Não? Que tal jantarmos no chinês? Às oito e meia, ok?
Lembrei, em seguida, de que podia ser acusado de assédio sexual. Mas não era um velho querendo trepar à força! Apenas a coisa mais normal do mundo, um homem convidando uma mulher da sua idade para jantar. Lei da natureza, meu caro; e Selena aceitou (e seu emprego não dependia absolutamente de mim).
- VI -
Agora passeava eu, o monstruoso, por Manágua. À tarde, vendo crianças saírem da escola. Coitada de Fan Yuan, pensei, era com certeza inocente. Mesmo que não, bastava eu trair, que o ciúme iria embora. E Toninho? Devia estar com a avó. Em breve, a polícia chinesa me telefonaria.
O recado já estava no hotel quando cheguei à noite. A surpresa em meu rosto foi real, pois ouvir a notícia da voz impessoal do gerente e receber seus pêsames em nome da cadeia de hotéis que representava não deixava dúvidas quanto ao ocorrido.
No restaurante chinês, esqueci do mundo conversando com Selena. Ela tinha vindo de carona com uma amiga, daí quando saímos do restaurante deixei ela em casa. Despedimo-nos com um longo beijo.
No cinema não existe crime perfeito. Na vida, acho que também não, se a polícia fosse averiguar. Só que na maioria dos casos não vai. Se fosse um figurão, com repercussão na imprensa, cobrança dos políticos e dinheiro envolvido, aí sim. Do contrário, o caso é arquivado, se não oficialmente, na prática.
Eis a moral da presente história. Toninho está com a avó por enquanto. Eu, com Selena, que está morrendo de pena de mim, mas não larga o osso. Talvez um dia eu comece a ser corroído pela culpa, tal qual o personagem de crime e castigo. Prorroguei meu período na Nicarágua, devendo fazê-lo de novo quando for o tempo. Por ora, estou mais para a insustentável leveza do ser.
Carlos Serapião Jr.
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